O que é um roteiro?

Um texto que não é uma narrativa

Todos nós fomos educados na tradição da tragédia clássica que se baseia na narrativa. Isto faz parte de nossos ‘genes’ e é difícil desprender-se deles, na verdade impossível como mudar de raça. No período da tragédia clássica, se narrava, não se mostrava. Fazia-se assim por razões de ‘bom gosto’, de conveniência. Agora, quando as contingências não são mais as mesmas, ainda nos resta alguma coisa que não conseguimos esquecer. Não estou afirmando que não há necessidade de narrativa no cinema. Algumas vezes é até interessante narrar alguma coisa que não vimos. Em A via Láctea, que escrevi com Buñuel, um personagem conta um milagre e para mim é uma das melhores cenas do filme... Buñuel e eu nunca havíamos experimentado isso e um dia dissemos ‘E se escrevêssemos uma narrativa cinematográfica?’... Imaginamos que alguém se senta perto de uma lareira, rodeado por uma platéia e começa a contar... E que o que ele diz, o que sugere não é nem uma narração romanesca nem um texto teatral, mas pertence ao mundo cinematográfico... O cinema não é literatura. Isto me parece muito importante. A literatura é talvez o maior perigo que ameaça o roteiro, o cinema: é preciso que desconfiemos das palavras muito bonitas que são utilizadas, das frases muito bem construídas: elas não têm equivalência na tela; elas se referem a um outro registro, o do estilo escrito e não à linguagem visual. Somos sempre tentados a colocar no papel ‘que reina em uma peça uma atmosfera lúgubre’ ou que ‘os personagens têm um ar de contentamento’. O que isso quer dizer? É preciso que um roteirista seja extremamente honesto com o filme que vai nascer de suas palavras. Ele não pode escrever algo que não vai acontecer, que não tem relação com o que o espectador irá ver.
Se podemos escrever que ‘Georges Swamm acorda de mau humor’, é preciso saber primeiro o que, sem essa indicação, não é possível, ou menos difícil. Em seguida, isso pode ser indicado, mas é preciso que este estado de espírito seja traduzido na tela, o que não é simples. Mas escrever ‘que ele acorda pensando em Odette’ pertence apenas à literatura, que vem naturalmente sob a pena quando é preciso afastar-se dela. A experiência me ensinou outras coisas no que diz respeito à escrita técnica de um roteiro.