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Roberto Schwarz

Filme sobre Antonio Candido é presente que não há como agradecer

Documentário de Eduardo Escorel nos oferece a companhia de um homem extraordinário

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Roberto Schwarz

Doutor pela Universidade de Paris 3, foi professor de teoria literária e literatura comparada na USP entre 1963 e 1968 e professor de teoria literária na Unicamp entre 1978 e 1992. Autor, entre outros livros, de "Ao Vencedor as Batatas" (1977), "Um Mestre na Periferia do Capitalismo: Machado de Assis" e "Sequências Brasileiras" (1999)

[RESUMO] "Antonio Candido, Anotações Finais", documentário de Eduardo Escorel a respeito do crítico literário, é um retrato despojado, mas poderoso, tanto de um cavalheiro elegante e discreto quanto de um país caótico, analisa Roberto Schwarz. No contraponto apresentado entre as aspirações civilizadas e culturais de um homem extraordinário e a baixeza de nossa classe dominante residem a verdade, a força e a melancolia profunda do filme, escreve o ensaísta.

Acho que não me engano dizendo que este filme é um presente que não há como agradecer. Ele nos oferece uma hora e meia na companhia de um homem extraordinário —Antonio Candido beirando os 100 anos.

Longe de qualquer sentimentalismo ou exibicionismo, não se trata aqui da emoção barata de ver um monstro sagrado de perto. Muito pelo contrário, a nota dominante é de despojamento. Estamos nos antípodas da autocomplacência ou autopromoção, tão comuns e esperáveis em grandes homens.

Os cadernos de fim de vida que o documentário acompanha nos apresentam um cavalheiro elegante e discreto, mas não convencional —lúcido, equilibrado, dotado de memória incrível, interessado no passado e no presente, seja familiar, seja político, seja artístico, dono de uma prosa límpida, e sobretudo empenhado em aprender com a própria experiência, o que lhe dá uma objetividade "sui generis". Enfim, a longevidade sem as diminuições que costumam acompanhá-la.

O crítico literário Antonio Candido
O crítico literário Antonio Candido - G_Maranhao/Guilherme Maranhão/Divulgação

Com uma sobriedade que é toda dele, Antonio Candido vai desfiando observações, reflexões, lembranças, do trivial ao cabeludo, sempre interessantes e curiosas, às vezes incisivas e desconcertantes. Uma contemplação paradoxal, ao mesmo tempo bondosa, distanciada e analítica.

Ao acaso dos dias, a diversidade dos assuntos faz aparecer a envergadura do memorialista, que tem algo vertiginoso: do jardineiro analfabeto da infância em Poços de Caldas às obrigações antirracistas de um eventual socialismo no Brasil, aos ritmos da vida conjugal e da viuvez, à originalidade da poesia de Baudelaire, ao tráfico de armas, drogas e mulheres no mundo atual, ao impeachment de Dilma, ao papel das pernas na velhice, tudo sem nenhuma grandiloquência, luminosamente claro.

Pois bem, esta variedade cheia de contrastes certamente é um valor estético. Mas o filme é muito mais e melhor do que isso. Se sairmos da sequência dos diários, que é contingente, e deixarmos que as matérias se reagrupem na imaginação, veremos surgir uma cena histórica inesperada, original e poderosa —a forma latente do filme— que se impõe ao pensamento.

De um lado, embebida no passado brasileiro, inclusive nos aspectos horríveis, como o tráfico negreiro, assistimos à formação de uma família ultracivilizada, aplicada em cultivar-se, voltada para a superação de nosso atraso, de nossos preconceitos, de nossas desigualdades, com ponto de fuga no socialismo de Antonio Candido. Uma evolução singular, que em miniatura não deixa de ser um processo, uma tendência, uma pequena possibilidade histórica.

Do outro lado, a baixeza caótica e imatura de nossa classe dominante, culminando no carnaval grotesco do impeachment de Dilma. Politicamente irreal, o que artisticamente não é um defeito, a contraposição faz sonhar. O desequilíbrio entre as forças não podia ser maior, nem permite dúvidas quanto ao desfecho, que todos conhecemos. Ainda assim, pela relevância das aspirações em cena, para o bem e para o mal, a polarização inspira e —por que não dizer— causa suspiros.

Dizendo de outra maneira, o diretor Eduardo Escorel combinou as entradas de diário ao arquivo fotográfico da família de maneira a dramatizar, realçando ao máximo o valor civilizacional da parte fraca, a derrota do progresso em nosso país —até segunda ordem.

É aí, na minha opinião, que residem a verdade, a força e a melancolia profunda do filme, em parte tão ameno. As belas imagens das calçadas traiçoeiras para idosos, dos automóveis mal estacionados e buzinando, do apartamento onde tudo é ordem, calma e cultura, devem a ressonância a esta história.

Antonio Candido, Anotações Finais

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