O que é um roteiro?

Existe história e história

Existem muitas maneiras de abordar uma história. Podemos classificar as narrativas em gênero ‘histórico’, épico, cômico, sabendo que estes rótulos são sempre inúteis. Podemos também tentar definir uma história segundo o público para o qual nos dirigimos.
Eu prefiro me situar em um outro plano. Creio que existem apenas três tipos de histórias.
A história contada por alguém que a conhece para pessoas que também a conhecem. Esse tipo de narrativa possui raízes muito ancestrais e é o mais difundido. É da mesma família do trabalho dos contadores de histórias. Penso sempre naqueles da Amazônia que têm por tarefa contar os eventos míticos que determinaram o nascimento da tribo. O que eles dizem, todos os espectadores já conhecem. Mas o que é importante é a maneira como eles contam, a maneira de introduzir suas personalidades aos acontecimentos. Os mesmos fatos muito precisos assumem uma outra coloração conforme é este ou aquele contador que se encarrega de contar. Danton(1) pertence a este tipo de história. O homem que ele é, o que lhe acontece não é uma revelação. 90% dos espectadores sabem que ele vai se opor a Robespierre e que será guilhotinado. O que vai lhes interessar no filme Danton que coloca em cena um homem cujo destino eles conhecem muito bem? É preciso segurar sua atenção não por meio de peripécias - que já estão enumeradas - mas pela maneira de apresentar a narrativa, o ângulo da tomada e o trabalho do ator.
Existe também a história contada por quem a conhece para aqueles que não a conhecem. Mais de 50% dos filmes que vemos pertencem a essa categoria, é evidente. Se escrevo um roteiro de um filme policial, eu conheço o culpado, conheço o assassino e sei como o desfecho vai acontecer. Os espectadores, pelo menos em princípio, ignoram tudo isso. Hitchcock, que é o mestre desta segunda categoria de narrativa, dizia: ‘não conte o fim’. É o que podemos chamar ‘a história chtt’ ou história ‘dedos sobre os lábios’.
Este gênero de narrativa também possui raízes muito antigas. O teatro, a arte dramática, tem origens sagradas, estão ligados ao religioso. Mas a tragédia grega pertence mais à primeira categoria. Aqui, encontramos o que apareceu com o romance, quer dizer, uma história que foi escrita por alguém que a inventou e é descoberta pelos leitores que a ignoram e penetram nela página após página, acontecimento após acontecimento.
Por último, existe o terceiro tipo de narrativa. Alguém conta uma história que não conhece a pessoas que não a conhecem mais que ele. Isso pode ser resumido em uma única palavra: ‘improvisação’. Aí também as origens remontam à noite dos tempos. O teatro a tem praticado desde os primórdios e, na tela, Godard ou Ferreri trabalham dessa forma e são os cineastas do terceiro tipo. No momento em que Jean-Luc Godard diz “filmando”, ele não sabe realmente o que vai se passar. Ele diz ‘é preciso evitar chegar antes de ter partido’ e a primeira questão que ele coloca sempre é ‘o que está acontecendo?’. No momento em que ‘estão rodando’ acontece alguma coisa que não aconteceria durante os ensaios. Existem evento e fenômeno novos. Ele os espera e os utiliza.
Ferreri raramente faz uma tomada duas vezes. O que lhe parece importante é o que ele captou naquele momento preciso. Acontece de ele suprimir se a tomada não ficou boa. Cada vez, bem entendido, ele tem uma idéia do que quer, mas não sabe o que vai ter e se deixa levar pela descoberta.
Para citar um belo exemplo do que a improvisação pode trazer a um espetáculo, é preciso citar Les maîtres fous, de Jean Rouch, que Peter Brook também considera um filme emblemático. Aí, trata-se de um happening, uma palavra decomposta que modifica todo seu sentido: o que acontece em um momento de transe, quando um ator está tão completamente possuído que esquece de si mesmo e se torna aquilo se supõe que está representando? É preciso ver e rever este filme para compreender bem o que a improvisação pode dar como dimensão nova a um espetáculo.
Raoul Ruiz, com quem eu falava um dia da minha maneira de classificar as histórias em três tipos de narrativas, me respondeu sob a forma de provocação e de brincadeira que existe ainda uma quarta ‘uma história contada por pessoas que não a conhecem para pessoas que a conhecem’. Eu pedi que me desse um exemplo e ele me disse ‘Todos os cineastas da América Latina ou do Terceiro Mundo vêm a Paris. Fazem o IDHEC(2), aprendem a fazer cinema à européia e em seguida retornam a seus países. Resolvem contar uma história típica deles, mas fazem em um estilo europeu. O que faz com que coloquem em cena uma história que eles esqueceram, perverteram, traíram, transformaram e a contam para pessoas, para espectadores que a conhecem muito bem, mas que simplesmente não a reconhecem mais’.

1 Filme de Andrej Wajda, roteiro de Jean-Claude Carrière
2 Institut des Hautes Études Cinématographiques (N.T.)